quarta-feira, 27 de maio de 2015

Cartas que não entreguei e outros pedaços de despedida‏

By Tavares 512   Posted at  06:41   bebidasubstantivofeminino













No espelho embaçado do banheiro que deixou de ser usado como lousa para recados que me arrancavam sorrisos, eu vi. No desinteresse em ouvir uma história do meu dia de trabalho e no beijo de boa noite tão automático quanto o dever de escovar os dentes. Entre as gentilezas que perderam o fôlego e escondido no meio da poeira do porta-retratos, eu vi. No silêncio do celular que parou de receber trechos de músicas em forma de SMS. Na máscara que os teus olhos usavam toda vez em que precisava justificar uma ausência, eu vi o nosso adeus.

Naquele sábado à noite em que você não se importou em fazer as pazes depois de uma briga boba. Eu tentei pedir desculpas por um erro que nem sabia se havia cometido, mas nem para elas houve paciência. Precisamente no momento em que você me deu as costas para dormir, eu senti. Na rapidez com que sua respiração começou a ficar pesada e você mergulhou num sono tranquilo. Quando percebi que os nossos espinhos não te incomodavam, eu sabia que era ele. Em cada instante da insônia que me perseguiu durante aquela madrugada. Nos braços que não me abraçavam. Na indiferença que me desconfortava. Na frieza do lençol que embalava o meu corpo, eu senti o nosso adeus.

Quando abri meu coração pra tentar te fazer enxergar as pequenas feridas que havia lá dentro, mas você estava ocupado demais para ver. Quando pedi que você escutasse ele agonizando infeliz, mas você estava cansado demais para ouvir. Quando transformei o meu querer mais puro em palavras tortas nas cartas deixadas sobre a escrivaninha, porque nunca tive coragem de entregar em tuas mãos, mas ainda assim você nunca leu. Quando te implorei um pouco de compreensão, e ouvi a tua voz pronunciar os termos mais rudes que pude reconhecer. No calor das lágrimas que faziam procissão em minha pele no silêncio de cada noite, eu senti o nosso adeus.

No dia em que eu comecei a pedir aquilo que se dá de forma espontânea, ele já estava lá. Nos momentos em que eu esperei você retribuir um carinho, planejar uma surpresa, fazer um convite inesperado, me deixar sem ar. Quando a frustração se tornou uma velha companheira, e o teu perfume misteriosamente foi ficando igual a tantos outros cheiros. Morreram as borboletas no estômago, e nosso diálogo se tornou tão comum quanto uma simples tarefa doméstica. No fim de tarde em que eu finalmente levantei os olhos e reparei no rapaz que me oferecia o seu lugar no ônibus todos os dias. Na canção que saltava do meu fone de ouvido quando eu percebi que não conseguia mais suportar o peso de um coração doente. No instante em que eu descobri que os teus atos estavam ficando pequenos demais para os meus sonhos, eu vi o nosso adeus.

Em todas as vezes que eu insisti em mendigar mais um pouco do teu amor, ele aguardava paciente. E você sem ao menos desconfiar, dava apenas migalhas suficientes para eu sobreviver. Teu amor virou um regrado gole d’água, tocando minha boca rachada e deslizando pela garganta seca, pra me fazer acreditar em desespero que ainda havia esperança. Mas você esqueceu que no coração não há espaço para o que é insípido e inodoro. Paixão é feito cachaça, dessas que coram a face, arrancam risos sem sentido e deixam as mãos dormentes. Dessas que depois de virada a primeira dose, a gente sabe que não deve, mas esquece os porquês e faz de tudo pra não parar. Dessas que quanto mais entorpecem, mais a gente grita que está tudo bem e pede mais uma. E mais outra. E outra. Eu quis me embriagar em cada gota do teu suor, em cada veia palpitando vida em teu corpo. Mas depois do êxtase, você me deu pouco, e ainda menos. Em toda dose que chegava pelo teu conta-gotas, sempre mais nítido, eu podia ver. Na manhã em que eu acordei de ressaca, tive certeza do nosso adeus.


E quando você finalmente reparar nessas palavras sobre a escrivaninha, eu vou estar tão distante cumprindo o destino da nossa despedida, que essa vai ser só mais uma carta que eu nunca te entreguei.


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